Com a devida vénia partilhamos um artigo do nosso camarada Lopo Cajarabille, publicado em 2013 na Revista da Armada, que talvez possa contribuir para as reflexões a fazer sobre reestruturações das Forças Armadas a vários níveis.
Em 1 de fevereiro de 1968
realizou-se uma reforma nas forças armadas do Canadá extremamente ousada.
Em resultado da persistência e da
vontade política do Ministro Paul Hellyer, antigo oficial da Força Aérea
Canadiana, a Marinha, o Exército e a Força Aérea deixaram de existir como
entidades independentes.
Perante a surpresa do mundo
ocidental, foi criada uma organização única intitulada “Canadian Armed Forces”, sem distinção de Ramos.
O conceito parecia simples e foi
entendido como vantajoso pelo Governo do Canadá, após aturadas discussões a
vários níveis. A unificação dos três Ramos pouparia dinheiro para comprar
melhor equipamento. Por outro lado, seria uma forma de acabar com as
rivalidades entre os serviços. Os Ramos poderiam assim treinar e combater em
conjunto e usar equipamento semelhante, esquecendo-se as enormes diferenças que
havia nestes aspetos. No caso específico da Marinha, pretendia-se também
dissolver os resíduos de influência britânica, com raízes históricas, que até se
notava na sua designação – Royal Canadian
Navy.
Foi criado um Comando de Instrução
para recrutar e dar a formação inicial a todo o pessoal militar. O Comando do
Material passou a ser responsável pela aquisição, armazenamento e distribuição
de sobressalentes para todas as unidades.
Todos os militares passaram a usar
os mesmos uniformes (verdes, do Exército) e a adotar os mesmos postos (do
Exército).
Pensava-se que os Ramos
individualizados não eram capazes de enfrentar os desafios do futuro. Apenas um
comando unificado, apoiado num staff
que pudesse controlar todo o planeamento e as operações, subordinado a um
Conselho Superior de Defesa, dirigido pelo Ministro da Defesa Nacional, poderia
atuar com uma visão nacional e formular soluções unificadas para os problemas
de defesa nacional.
Curiosamente já tinha havido uma
tentativa semelhante no final da I Guerra Mundial, mas foi abandonada após a II
Guerra Mundial.
A Marinha foi o Ramo que mais
resistiu, o que conduziu a várias exonerações, dos que não aceitaram a mudança,
nomeadamente o muito respeitado Contra-almirante Landymore, o mais antigo dos
comandantes operacionais. Vendo-se impotentes para resistir à vontade política,
os oficiais, sargentos e praças sob o comando do CALM Landymore, juntamente com
outros, resolveram manifestar-lhe publicamente o seu apreço. Formaram duas
extensas alas de militares para a passagem do Almirante à saída do comando e
ovacionaram-no longamente, com muitas lágrimas á mistura.
Estando embarcado na fragata
“Magalhães Corrêa”, tive ocasião de participar na STANVFORLANT em 1976, que
contava também com um navio canadiano, o DDG “Huron”. Lembro-me bem da simpatia
dos oficiais do Canadá, mas era visível o descontentamento por usarem um
uniforme tão diferente das outras marinhas e já terem pessoal a bordo
indiferenciado. Quem conhece este ambiente pode imaginar o gozo e as piadas
constantes por parte dos britânicos, americanos, alemães e, evidentemente, dos
portugueses.
O divertimento atingiu o auge
quando foi organizada uma operação multinacional, (julgo que liderada por
alemães) para “roubar” um enorme índio de madeira que estava orgulhosamente
colocado na câmara de oficiais no navio canadiano. Um grupo provocou uma
distração e outro grupo pegou no índio e fê-lo arriar para uma embarcação que,
silenciosamente, encostou no bordo do lado do mar da “Magalhães Corrêa”, que
estava atracada ao “Huron”. Os oficiais canadianos não deram por nada, mas não
acharam graça ao sucedido, até porque foi encarado como uma falha de segurança
pouco desculpável.
Depois de várias diligências, e
passados um ou dois dias, lá foi organizada uma escolta, que transportou o
índio em marcha militar pelo cais, recuperando-o do navio alemão onde estava
guardado. Claro que as cervejas e o vinho tinto alimentaram as gargalhadas e
faziam tirar a conclusão de que a ocorrência só foi possível, porque eles não
eram verdadeiros marujos.
Quais foram os resultados da
reforma, certamente muito bem intencionada?
As poupanças nunca existiram e os
novos equipamentos não foram comprados, nos termos em que se preconizavam. A
desmoralização da ex- Marinha foi enorme, mas também afetou os outros ex-Ramos.
Passados alguns anos foram
restaurados os postos tradicionais na Marinha e, em 1985 (17 anos após o início
da reforma) foram também recuperados os uniformes habituais da Marinha. Em
2010, os oficiais puderam usar novamente o óculo nos seus galões. Finalmente,
em Agosto de 2011, os Ramos readquiriram a sua individualidade. Renasceu a “Royal Canadian Navy”. Os veteranos
tinham lutado muitos anos para o conseguir, sob o lema: RESTORE THE HONOUR!
Recentemente
fizeram-se vários ajustamentos à organização da Marinha, no sentido inverso ao
que tinha sido feito a partir de 1968 e é possível que a tendência continue.
Como foi
possível que isto acontecesse num país que é dos mais desenvolvidos e dos mais respeitados
do mundo pelo elevado nível educacional e cultural? Os custos desta experiência
podem ser determinados?
Talvez
se possa encontrar alguma explicação, fazendo um paralelo com alguns dos
princípios que aprendemos na teoria geral da estratégia, usando um raciocínio
semelhante.
Dos três
grandes princípios com maior aceitação geral, há dois que interessa considerar
neste caso. A importância do objetivo e a economia do esforço.
O
primeiro obriga-nos a pensar fundamentalmente na adequabilidade da estratégia.
Se a estratégia não for adequada não traça o rumo certo relativamente aos
objetivos a alcançar, desviando-se para outros alvos. Trata-se portanto de uma
questão de eficácia, ou seja, em que grau os objetivos poderão ser atingidos.
O
segundo princípio apela essencialmente à poupança de meios, ou seja, a obtenção
de um determinado resultado com o mínimo de recursos. É o que se pode traduzir
por eficiência.
A melhor estratégia será a que promete a maior
eficácia e a maior eficiência. O problema é que a eficácia e a eficiência nem
sempre andam a par. No caso em apreço, valorizou-se de tal modo a eficiência,
que se perdeu de vista a eficácia.
Há um
conhecido estrategista, Colin S. Gray, que atribui maior peso à eficácia do que
à eficiência. Quer isto dizer que o objetivo é tão importante que mais vale
gastar demasiado para o alcançar, do que consumir recursos e não ter o sucesso
esperado.
De
facto, os cálculos apontavam para menores custos agregando as principais
estruturas dos Ramos e reforçando o poder político. Só que as poupanças não
foram tão consideráveis como se pensava e não se contabilizaram outros fatores
cuja avaliação quantitativa é muito complexa ou mesmo impossível. Estão neste
caso, a identidade dos Ramos, o moral do pessoal, o sentido de pertença, a
solidariedade, o significado de um uniforme, o imaginário de um tipo de
serviço, etc. Outra importante constatação foi a falta de missões
verdadeiramente conjuntas de razoável dimensão, a cargo das forças armadas do
Canadá.
Tudo
isto nos deve obrigar a meditar profundamente. Não sendo possível, obviamente,
apresentar um estudo bem estruturado, limito-me a apresentar apenas algumas contribuições
para a análise do assunto.
Será bom
não esquecer que o “conjunto”, no âmbito militar, é um conceito de aplicação
fundamentalmente operacional. Diz respeito a atividades operacionais em que
participam dois Ramos, pelo menos, sob a responsabilidade de um comandante.
Isto é, o conjunto justifica-se quando se revela melhor do que a soma das
partes. Todavia, a maioria dos países, entre os quais Portugal, não dispõem de
capacidades que permitam realizar operações realmente conjuntas, com uma
dimensão significativa, em tempo de paz. Como exceção, identifica-se a
vigilância e controlo dos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição
nacional, que tem caraterísticas muito próprias e exige articulação entre a
Marinha, a Força Aérea e outras entidades. Mesmo em tempo de guerra, a única
missão verdadeiramente conjunta que poderá ser necessária é a defesa do
território nacional. Nesse caso, tudo se altera.
As
operações conjuntas, quando viáveis, justificam-se pelos ganhos de eficácia e,
duma forma geral, ganhos de eficiência.
Um outro
tipo de agregação obedece ao conceito de “integrado”, que não tem aplicação
normal no âmbito operacional, mas sim no quadro das infraestruturas. As
organizações integradas não apresentam ganhos de eficácia significativos em
relação à soma das partes, mas são pensadas para obter ganhos de eficiência
(fazer o mesmo com menos recursos).
Por
exemplo, um sistema de pagamento integrado não será mais eficaz do que um
sistema repartido, pois todos continuam a receber o mesmo e atempadamente. Mas,
será mais eficiente se exigir menos recursos humanos e materiais e prestar o
mesmo serviço.
Acontece
por vezes que se provocam integrações que mais tarde se revelam bastante menos
eficazes, apesar de pouparem recursos. É que, a avaliação de certos parâmetros
de eficácia nem sempre é fácil e evidente. Foi isto, em grande parte, o que
provocou a amargura da Marinha do Canadá.
Participei
num dos grupos de oficiais que discutiram os resultados do 1º ano comum das
Academias Militares em Portugal. A multiplicidade de elementos demonstrou
claramente que a solução não era favorável, nem em termos de eficácia, nem em
termos de eficiência, por várias razões. Houve então a sensibilidade que levou
à decisão política de terminar a experiência, apesar de algumas vozes que
insistiam na possibilidade de melhorar a eficiência para provar a vantagem da
integração, esquecendo completamente a eficácia.
Também
acompanhei a fusão dos Institutos Superiores dos Ramos. Nesse caso, parece-me
que todos ganharam relativamente aos objetivos em presença. De facto, os cursos
e a preparação ministrada sofreram um salto qualitativo, que parece
indesmentível. Todavia, há quem admita que se gastam mais recursos agora do que
quando as escolas estavam separadas. Nunca vi essas contas, mas a eficácia
conseguida julgo que justifica a integração.
Tirar
conclusões definitivas é sempre um exercício muito arriscado quando estão em
causa organizações tão complexas como os Ramos das Forças Armadas e a sua
articulação. Afastando a hipótese de tentar definir receitas, julgo que há dois
elementos que devem estar sempre presentes em qualquer reestruturação das
Forças Armadas. O estudo exaustivo de todas as componentes do problema e uma
dose considerável de prudência.
Não
podemos partir do princípio simples de que um é melhor do que três, em todas as
circunstâncias, mesmo que haja bons indícios de poupança significativa. Por
vezes, a poupança é aparente e perde-se de vista o objetivo.
No
âmbito das Forças Armadas, a redundância crítica é indispensável para garantir
a operacionalidade em condições de emergência. Certas funções devem ser
duplicadas, apesar de serem mais dispendiosas. Os navios da Marinha são
construídos com estas preocupações. Um sistema de comunicações único constitui
uma vulnerabilidade inaceitável. As principais infraestruturas de apoio não
devem ser integradas sem redundâncias, pelo menos no que respeitas às funções
básicas. Caso contrário, um simples fenómeno natural pode determinar ruturas e
desarticulações irremediáveis. Os hospitais militares inserem-se nesta
classificação.
O ponto
de partida não pode ser negligenciado. Pode ter havido anteriormente
investimentos avultados de dois ou três Ramos e propõe-se integrar algo porque
vai sair mais barato, mas ainda requer um investimento adicional. Verifica-se
depois que o que se ganha não chega para justificar o desperdício dos
investimentos feitos.
As
situações particulares, não raras, podem também alterar os dados do problema. A
localização, o meio, as distâncias, a rapidez de acesso, a frequência de uso,
etc, constituem elementos que podem recomendar a unificação ou a separação de
estruturas.
Talvez o mais importante seja o exame minucioso dos fatores intangíveis, para que a procura constante da eficiência, que é um bom princípio, não possa produzir a amargura que ofusca a razão de ser.